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Dreamscape - Um Atalho, um Acordar e uma Rachadura

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Mensagem por Leishmaniose Seg Jul 25, 2011 1:39 pm

Olá,

Desde meados de 2007 eu venho trabalhando em um cenário que vim a chamar de Dreamscape, que retrata um universo ficcional similar ao nosso, mas cuja origem esteja ligada diretamente ao mundo onírico. Como eu tinha, nesse mesmo ano, começado uma campanha de 4ª edição nesse mesmo esquema - que não passou das três sessões por causa do engessamento de preparo que a 4ª ed tinha e que eu não tinha - decidi escrever o material e ir publicando aos poucos no blog do Sandu. Esse conto meio que se passa necesse cenário, mostrando algumas de suas características imediatas - e quem está jogando o Classroom Deathmatch pode reconhecer alguns elementos usados lá, adianto eu que não é por coincidência, mas não vamos colocar carroça na frente dos bois porque tudo será explicado em seu devido tempo sobre o mistério da ilha e de sua senhora. Wink

Agradecimento Especial à minha sócia Inaê Siqueira, a criadora da Mellina, a Cammy Nuwanda, que tem dado maior força com o cenário, e a Lony, que me inspirou a escrever esse conto - escrevi-o pra explicar em tese como funciona alguns elementos oníricos como a projeção em sonhos de outras pessoas e cositas más...

Bonanças.

Atenciosamente,
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Dreamscape - Um Atalho, um Acordar e uma Rachadura Empty Um atalho, um acordar e uma rachadura

Mensagem por Leishmaniose Seg Jul 25, 2011 1:54 pm

O apartamento estava na penumbra, com um único abajur em forma de guarda-chuva iluminando o canto da sala, na esquina entre o sofá maior e o menor. Na estante do outro lado da sala, as luzes do aparelho de som moviam-se ao ritmo lento e melódico do estilo piano rock, enquanto “Gravity” na voz de Sara Bareilles ressoava sutilmente por todo o apartamento. Carregando uma bandeja contendo um prato com alguns biscoitos de forno e uma caneca de chocolate quente, uma garota trajando um moletom, e meias com desenho do frajola, sentou-se no sofá, colocando a bandeja ao lado do abajur. Mordiscando levemente um dos biscoitos, pegou os óculos e o livro que estavam em cima do móvel, ao lado do abajur, e, agora, da bandeja. Prendendo os longos cabelos castanhos em um rabo de cavalo, ela alinhou os óculos em seu rosto, retirando os cabelos da franja que teimosamente insistiam em cair em sua face. Abrindo o livro na página marcada, deu prosseguimento à leitura a partir da marca.

Sua sobrancelha arqueou-se sutilmente, como se houvesse algo estranho naquilo. Ela não se lembrava de ter lido o início desse livro, mas quanto mais seus verdes olhos percorriam as palavras, mais ela se incomodava, sem entender bem qual o motivo. Até perceber que aquele livro falava da vida dela. Fechando-o cuidadosamente pra não desmarcar a página, procurou pelo nome do livro e da autora na capa. Não ficou surpresa ao descobrir que não havia nada além do alto relevo de um chapéu na capa, pois sempre achara que sua vida não tinha um título que a definisse bem. Estava pra dizer algo em voz alta, quando viu a parede ao lado da varanda criar ondas, como se feita de água. Sem perceber, ela prendeu a respiração quando a cabeça de um jovem atravessou a parede, criando novas ondas na parede. Ele olhou para baixo, ignorando a presença dela, e sorriu ao ver que o chão estava ali. Seu pé não demorou a surgir, seguido do corpo do rapaz. Ele trajava uma calça social, tênis e camisa manga longa, aberta um pouco acima do peito, mostrando uma camisa interna de gola alta. Após ele atravessar, as ondas diminuíram até a parede voltar a parecer sólida.

— Perfeito. — pronunciou para si mesmo, sorrindo, enquanto ajeitava a roupa, dobrando as mangas da camisa. — Agora só preciso atravessar discretamente esse sonho sem que o sonhador me...

Ele encerrou sua sentença, vendo-se observado pela garota no sofá. “.org”, pensou, em referência interna a um site cuja sigla no seu idioma nativo podia não significar nada, mas na dele significava um palavrão relacionado à complicações. Ela soltou a respiração, engolindo a seco. Pela expressão que ele adotou em seu rosto, a jovem leitora pôde concluir que aquilo não era nada bom pra ele e, por mais estranho que parecesse, ela sentiu-se mais confortável com isso. Coçando levemente a cabeça, ele permaneceu parado, sem saber bem direito o que fazer. Ela conhecia muito bem aquela expressão de “preciso de tempo pra pensar em uma resposta”, pois seu irmão a utilizava muito quando era pego fazendo algo que achara que não seria descoberto. Havia algumas alternativas, mas vendo-se observado tão fixamente... Vendo-se em uma ilusória pressão de ter que fazer alguma coisa... Ele apenas decidiu optar pela verdade. Daria menos trabalho, pelo menos essa era sua expectativa.

— Boa... — ele olhou ao redor para ver se identificava qual a hora do dia naquele lugar. Vendo a lua no alto do céu, ele voltou o olhar na direção da garota. — Noite. Desculpe atrapalhar o seu sonho, mas eu tive que utilizá-lo de atalho pra um compromisso importante. Espero que não se incomode em conceder passagem a este humilde oneironauta.

Sonho... Se era realmente um sonho, isso explicaria o motivo do livro ter a história de sua vida. Ela estaria apenas relembrando o que ocorrera de importante nesses últimos dias ou, numa hipótese mais profunda, aquela era uma alegoria de sua mente mostrando que ela sentia-se apenas uma expectadora na sua própria vida. Uma agente passiva sem força para atuar como atriz e autora da sua maior obra-prima: a sua vida. Seria isso? Sonho... É, essa alternativa explicaria até mesmo o aparecimento estranho daquele garoto, que estava sorrindo pra ela como aquele menino levado que foi pego aprontando alguma coisa e agora estava tentando convencer a babá a não contar nada pra seus pais. Mas havia algumas coisas que não se encaixavam. Se era um sonho, era um retrospecto de memorização ou análise de elementos da sua vida. Então, como ela não se lembrava daquele garoto e nem sequer como poderia sonhar com uma palavra que nunca sequer ouvira? E nem sequer se lembrava direito do que ele se chamara... Algumacoisanauta ou algumacoisanatua? Dominada pela curiosidade, perguntou:

— Sonho? Mas como posso sonhar com coisas que nunca vi ou ouvi?

— Bem, essa é uma pergunta complexa... Há uma teoria da biologia que diz que os nossos órgãos atualmente captam tantas informações, que elas acabam não sendo processadas pelo consciente. Porque o consciente tem de focar em algo pra não nos levar à loucura. Bem, essas informações acabam sendo filtradas apenas pelo inconsciente, que as revelam em sonhos e insights. Então, muitas coisas que achamos que nunca vimos ou ouvimos, em um sonho ou insight, pode apenas ser uma coisa que vimos e ouvimos e não prestamos atenção, entende? — pra surpresa da garota, ele respondia como se estivesse respondendo uma prova ou uma pergunta feita numa apresentação. — Também há algumas possibilidades mais peculiares pra que isso aconteça. Porque o Sonhar... Quero dizer, o mundo dos sonhos tem uma atuação do espaço-tempo diferente da que ocorre na Terra. Por isso é possível que, ao dormir à noite, você não crie um bolsão de sonho, que você entre na área de um sonho que já existia ali, sonhando na verdade com o sonho de outro ser. Também é possível que você crie um sonho tão próximo ao de outra pessoa que os sonhos se cruzam. E, por fim, você pode cair em um sonho seu que foi originado no passado ou que será originado no futuro. É raro, mas isso acontece. E, nesse último caso, a pessoa acaba descobrindo um pouco sobre seu futuro até aquele momento em que se passa o sonho. Por isso os sonhos possuem na cultura popular um caráter divinatório e de premonição.

— Então, em qual dessas situações eu me encaixo?

— Hã... Nenhuma. Infelizmente, ou felizmente, o seu sonho é apenas um sonho normal. Um sonho moldado pelo seu inconsciente e repleto de mensagens discretas, sobre coisas que você precisa descobrir aos poucos sobre si e sua vida. A única coisa incomum nele sou eu, que fiz a besteira de tentar passar por aqui, como um atalho, pra chegar onde eu queria. Ou seja, não tem com o que se preocupar, eu estou apenas de passagem rápida.

O garoto deu um sorriso e andou na direção ao outro lado da varanda, pra atravessar a parede e continuar por seu caminho. Após três passos, seu corpo oscilou. A garota observou assustada, voltando a prender a respiração, ele ficar em estática, como a imagem de uma televisão mal sintonizada, por dois segundos. Ele se assustou visivelmente com o ocorrido, fato que a deixou mais nervosa.

— Ah, não... Aqui não! Que droga! — ele levou a mão ao peito, enquanto sua imagem continuava tremendo em curtos espaços de tempo.

— O que está acontecendo? — perguntou a garota, por fim, respirando e abraçando uma das almofadas do sofá.

— Estou acordando! — ele cerrou o punho, olhando pra parede atrás dele. — Tenho que sair daqui antes que eu acorde!

Antes que pudesse fazer qualquer coisa, seu corpo entrou em estática e ele foi puxado em direção à parede, rachando-a com o impacto e desaparecendo. A garota manteve-se parada, assustada, colada ao sofá, com a respiração presa e a almofada abraçada fortemente. Ela fez uma promessa pra si mesma de não ler mais quadrinhos antes de dormir. Aquilo era uma demonstração clara de como aquelas “graphic novels” estavam afetando sua mente. Após algum tempo, vendo que daquela situação estranha só restara a rachadura na parede, ela soltou a respiração e a almofada. Decidira ir para o seu quarto. Fosse sonho ou não, ela sentia-se mais segura entre as quatro paredes do seu quarto. Precisava de um pouco de segurança e sentir que estava no controle novamente, pelo menos naquele momento. Apagando a luz do abajur, ela mordiscou um novo biscoito e com a caneca de chocolate quente na mão, fez lentamente o caminho no escuro na direção do seu quarto. O som tocava uma música diferente, “In my place” da banda Coldplay. Indo lentamente na direção oposta, ela não percebeu a rachadura na parede da varanda aumentar um pouco, enquanto uma estranha névoa parecia vazar dela.

***

Um grande estrondo fez o garoto levantar suado, bastante tenso. A luz da lua crescente entrava pela janela, permitindo que seus olhos acostumados àquela pouca luz conseguissem enxergar bem o lugar. Olhando para o armário, para a mesa cheia de livros e para o computador ao lado da mesa, ele concluiu que estava de volta ao seu quarto. Menos mal, pois apesar de ser mínima, havia a probabilidade dele cair em algum outro lugar e isso seria muito desagradável. Algo o acordara de forma brusca, arrancando-o do Sonhar e jogando-o violentamente de volta ao seu corpo. A dor que sentia no seu corpo e em sua cabeça não deixava dúvidas quanto a isso... Ele sentia como se tivesse sido atropelado por um ônibus e, pra completar, de ressaca. Era uma reação biológica, pois sem estar consciente ele não poderia se defender de qualquer perigo. Mas esse despertar de emergência, para alguém que não estava em seu sonho, era uma verdadeira freada brusca de um veículo a mais de trezentos quilômetros por hora. E, pra completar, ainda havia a ressaca, como se ele tivesse tomado litros de absinto.

Levando a mão à cabeça, ele se recriminou por não ter tido autocontrole suficiente para pelo menos acordar após ter saído do sonho da garota com meias do frajola. Agora provavelmente a situação se complicaria um pouco mais. Despertar bruscamente estando no sonho de outra pessoa não deixava seqüelas somente no mundo real... Quando a pessoa adormece, ela cria um karyon, uma bolha onde seu inconsciente pode construir o sonho livremente. Esse bolsão possui uma camada protetora que protege ao sonho e seu sonhador, impedindo que algo de mal aconteça a ele dentro do karyon. Ao acordar bruscamente, a psyche, seu corpo onírico, foi puxada de dentro pra fora, abrindo um buraco na camada protetora, dando passagem livre para qualquer coisa que estivesse por perto. Agora, ele tinha de voltar e tapar o buraco, além de expulsar tudo que tiver entrado. Sem mencionar que certamente iria ouvir um enorme sermão por estar atrasado...

Um novo estrondo ecoou pelo quarto, vindo do lado de fora da sua casa. Ele não podia voltar a dormir se o barulho não parasse. E, por mais que desejasse não assumir, sentiria uma “certa satisfação” em fazer o barulho parar. Com a mão à cabeça, levemente mal humorado por esse imprevisto, ele levantou-se, cambaleando, indo até a janela. Seus olhos cerraram de raiva ao ver um garoto brincando de chutar lata em cinco latas de lixo, tentando ver qual chute fazia espalhar mais lixo pela rua. Normalmente, ele não se incomodaria. Não demoraria pra vizinha aparecer na rua reclamando e colocando o moleque pra correr, mas seu corpo estava dolorido, sua cabeça latejava, ele estava muito chateado por não ter conseguido se segurar no sonho um tempo suficiente pra sair dele antes de acordar e, por fim, saber que agora tinha um problema pra resolver do outro lado... Aquilo não ia acontecer “normalmente”. Deixara de ser uma situação normal desde que ele acordara. Com o olhar cerrado, ele estendeu o braço à frente, projetando em sua mão toda sua força de vontade, todo o seu desejo. Com a voz enrouquecida, disse:

— Que o manto da escuridão seja perfurado pela luz das estrelas... Megethos. Stellaris.

O ar ao seu redor, ondulou como ondas de calor no deserto do meio-dia. Em suas mãos, a energia ondulada tomou forma de um arco feito de pura energia. Um arco de epythimia, a energia dos sonhos. Levando a outra mão ao arco, ele apertou os dedos na energia e a puxou para trás, fazendo surgir uma flecha da mesma matéria onírica. Retesando o arco o máximo que conseguia devido à sonolência e ressaca, ele soltou a flecha. O projétil girou no ar, se dividindo em dois, atingindo em cheio ao garoto, jogando-o pra trás. O alvo caiu nas latas de lixo, inconsciente. As flechas se desfizeram em psammos, a areia dos sonhos. O garoto não teria nada fisicamente, mas quando acordasse iria sentir uma forte enxaqueca, além de passar o dia completamente exausto e fatigado. Ele abaixou o braço, desfazendo o arco.

Piscando os olhos, o oneironauta voltou lentamente à sua cama. Devido ao esforço e concentração pra invocar Stellaris, seu arco onírico, o sono estava passando. E isso não poderia ocorrer, porque somente dormindo ele conseguiria retornar ao sonho da garota com meias do frajola. E, infelizmente, ele não podia utilizar algum remédio para dormir, pois os remédios anulavam a energia de sua psyche, não dando forças para que ele pudesse sair de seu sonho. Ajeitando-se na cama na posição mais familiar para ele, esvaziou a mente, iniciando uma meditação que o auxiliaria a entrar de volta no reino dos sonhos. Só esperava que não fosse tarde demais.

***

Ela não conseguia entender bem o que estava acontecendo... Seu quarto era o seu macondo, o seu cantinho secreto, o seu lugar só seu. O refúgio em que sentia-se bem e feliz, que podia esquecer os problemas e tristezas do mundo, que podia ser ela mesma sem medo de julgamentos, escárnios e condenações. E, agora, naquele seu templo tão sagrado, ocorria uma festa. Afetos e desafetos passeavam pelo seu quarto, conversando, bebendo e comendo. Pessoas de seu dia-a-dia, que ela gostava e que ela desgostava, mexiam nas suas coisas, sujando-as e rasgando-as. Elas riam dela, de seus segredos, julgavam-na e condenavam-na, falando mal e debochando da garota. Isso a fazia sentir-se exposta, invadida, ultrajada, humilhada, só e sem segurança... Ironicamente, o único lugar seguro o suficiente para protegê-la de tais situações do dia-a-dia, tornara-se o palco daquela peça macabra. De início ela tentara lutar, gritando e mandando todo mundo embora, tentando tirar suas coisas das mãos deles... Mas não adiantara, pois eles a ignoravam. Ela não tinha forças para nem sequer empurrá-los, como se toda aquela alegoria social fosse maior e mais forte que ela.

Encostando na parede do quarto, seus olhos começaram a marejar, vertendo lágrimas que ela tentava secar com as mangas do seu moletom. E, nesse momento, para seu maior desespero, as pessoas em seu quarto pararam de ignorá-la. Apontando para ela, falavam do seu moletom, de seu cabelo, de seu choro, de suas infantilidades e do quanto ela era decepcionante como colega, amiga, parente e filha. Alguns, não satisfeitos só em comentar, aproximaram-se, empurrando-a. Não demorou para que um puxasse seus cabelos, desfazendo o rabo de cavalo. A caneca de chocolate quente que ela ainda segurava, caiu no chão, quebrando-se. Seu moletom começava a arregaçar o tecido, de tão puxado que estava sendo. Ela agitou-se, tentando fugir, mas novamente percebera que não tinha forças para lutar. Como se as impressões sociais fossem mais fortes que ela. Se aquilo era um sonho, como o algumacoisanatua falara, ela queria muito acordar. Pois aquilo se tornara um pesadelo. O pior pesadelo que já tivera em toda sua vida. A gola do seu moletom já estava rasgando, quando os seus atacantes foram puxados pra trás. Abrindo os olhos, ela viu surgir o estranho garoto que atravessara a varanda. E ele estava bastante sério. Ele ficou entre as pessoas e ela, estendendo as duas mãos para os lados.

— Bem disse o Tito Kube... Se eu não conseguir protegê-los apenas esticando a minha mão, eu quero segurar uma espada. Um poder capaz de despedaçar o destino deve se parecer bastante com o golpe de uma espada. Megethos. Flamma.

O ar ao redor do garoto começou a ondular, brilhando levemente. Para surpresa dela, em cada uma das mãos do estranho, o brilho se concentrou tomando a forma de espadas de fogo. As pessoas tornaram a avançar, mas ele avançou, girando as duas lâminas rapidamente. Cada pessoa acertada pela lâmina transformava-se em areia. O garoto realmente estava certo, aquilo só podia ser um sonho. Mesmo com essa capacidade, ele parecia tenso com toda a situação. O garoto respirou fundo, sua tática mais comum era a ofensiva e justamente por isso estava preocupado. Pois mesmo sendo feitos apenas de psammos, ainda eram muitos. Ele ia demorar pra derrubar todo mundo, e nesse meio tempo não tinha como garantir a segurança da garota. Puxando a gola arregaçada do moletom, ela tentava se recompor, quando ele recuando após escapar do ataque de uma das pessoas de areia, a fitou com o olhar e perguntou:

— Você está bem?

Ela não conseguia acreditar naquilo. Ele era cretino ou estúpido? Era óbvio que ela não estava nada bem. As pessoas de seu convívio estavam todas ali, rindo dela, julgando-a e ela via o seu cantinho de paz transformado num palco de pesadelos. Como ele achava que ela estava realmente? Balançando a cabeça negativamente, lançou um olhar de descrença pra ele. Só faltava ele perguntar o motivo. Aliás, se ele perguntasse o porquê, ela estava decidida a esquecer que ele estava ajudando-a e dar-lhe um chute na canela. Aparentemente ela não fora tão transparente em sua expressão, ou ele não estava tão atento, pois apenas olhou para a parede por trás dela. Cruzando as duas lâminas, ele golpeou a parede, que ficou com uma leve queimadura em forma de x. Ela não podia acreditar que ele estava mesmo tentando destruir seu quarto... Ele arqueou a sobrancelha, preocupado. Se fosse apenas um ataque psammos aleatório, a parede teria se desfeito com o golpe. Havia algo a mais ali e ele tentava prendê-los. Fazendo um movimento, ele afastou novamente as pessoas de areia.

— Temos um pequeno probleminha aqui, moça... — ele murmurou voltando sua atenção de forma mais cerrada para o meio da multidão. — Alguma coisa a mais passou pela rachadura e está controlando essas pessoas... Quando eu avançar, corra para a porta, saia e tranque-a.

Ela não teve tempo de responder, pois assim que terminou de falar, a expressão na face das pessoas mudou para um tom mais maligno, mais psicótico, com um sorriso macabro no rosto de cada uma. O garoto avançou contra elas, iniciando uma luta que deu o tempo suficiente para que a garota corresse em direção à porta. E ela assim o fez, mas ao tentar abrir a porta, uma mão a fechou novamente. Ao olhar para o lado se viu cercada por aquelas criaturas, o que a fez recuar na direção do canto do quarto. Com os olhos procurou pelo estranho, mas ele estava tão cercado quanto ela, tentando abrir caminho em sua direção. A situação estava complicada e a única certeza que ela tinha é que iniciaria uma terapia quando acordasse desse pesadelo. Se acordasse. E tal pensamento a fez encolher-se um pouco mais. Uma das pessoas, uma amiga de infância, puxou seu moletom, preparando pra atacá-la usando seu diário. Nesse momento um trovão ecoou pelo quarto, liberando uma onda sonora que transformou a sua amiga e todos que estavam perto dela em areia.

— Eu, particularmente, odeio filmes de zumbis. São tão sufocantes, vocês não acham?

Atravessando a parede, como se ela fosse feita de água, surgiu uma adolescente. Um pouco mais nova, trajava uma calça jeans, tênis, uma blusa e um colete. Gesticulando rapidamente, ela apontou para o restante das pessoas. Em uma perfeita sincronia, o garoto atingiu duas pessoas com suas lâminas, abrindo um espaço para o qual saltou, afastando-se das pessoas, enquanto uma nuvem de adagas surgia na área atingindo a todos os oponentes, transformando-os em areia. Com exceção de um... A areia que modificara sua aparência escorreu em direção ao chão, deixando à mostra uma criatura feita de pura escuridão, com olhos rubros e presas brancas e salientes num sorriso macabro. Seria aquela criatura horrível a quem o garoto se referira quando disse que alguma coisa havia entrado em seu sonho? Ela levou as mãos à boca, enquanto a adolescente indagou, surpresa:

— Um espreitador onírico?

A criatura soltou um grunhido, abrindo ainda mais o seu sorriso macabro. Uma grande escuridão tomou o quarto, impedindo-os de enxergarem até a si mesmos. Era um dos poderes naturais daquela criatura, lançar uma nuvem de escuridão que preenchia toda uma pequena área. Temendo pelo pior, a garota se encolheu no canto da parede, enquanto desejava ardentemente acordar, mesmo que fosse lambida pelo seu cachorro, como tantas vezes acontecera antes. Para seu desespero, ela lembrou-se que o trancara no quintal aquela noite. A voz da garota adolescente fez-se ouvir:

— Megethos. Sphaera.

A escuridão, tão rapidamente quanto surgiu, dissipou-se, tragada por um orbe de cor azul escura que se encontrava nas mãos da adolescente, que se mantinha concentrada. A garota a observou demoradamente. Ela parecia tão corajosa e decidida pra idade dela... Não se assustava, não deixava de agir independente do desafio. Deveria ter o quê? Por volta de catorze ou quinze anos? Ela, dona do sonho, tinha vinte. Será que se ela fosse tão firme como a recém-chegada, as coisas seriam diferentes? Como a adolescente reagiria no confronto contra os pesadelos dela? Certamente não seria chorando e se encolhendo... Os seus devaneios foram interrompidos pelo garoto que saiu correndo em direção à porta aberta, por onde certamente o tal espreitador escapara. A adolescente aproximou-se dela, com um sorriso de pura simpatia em sua face. O orbe desaparecera.

— Não precisa mais se preocupar. Está tudo sob controle. Collie vai acabar fácil com aquele espreitador. — ela estendeu a mão na direção dela, que a fitou e aceitou o gesto. A adolescente ajudou-a a levantar-se enquanto gesticulava com a outra mão. Ela ouviu a porta do armário abrir e pra sua surpresa, uma mão translúcida flutuava no ar, retirando um novo moletom de dentro do armário. — Melhor vestir esse, não é tão bonito quanto o que você está vestindo, mas está em melhores condições.

— Obrigada. — agradeceu, pegando o moletom oferecido.

***

Collie estava agachado perto da varanda, observando demoradamente o chão. Os rastros de epithymia não deixavam dúvidas: O espreitador vendo-se encurralado fugira pela rachadura na camada do karyon, o sonho. Aguçando os seus sentidos, ele procurou por mais rastros ou sinais, mas para seu alívio, além do espreitador, havia somente psammos, a areia onírica, havia passado pela rachadura, provavelmente do reino de Proebetia, a terra dos pesadelos. Isso explicava o rumo que o sonho da garota tomara e até o aparecimento do espreitador. Suspirando fundo, ele levantou-se, olhando pra rachadura que aumentara de tamanho. As espadas se desvaneceram no ar. Ouvindo passos, ele voltou o olhar na direção da sala e balançou a cabeça negativamente.

Ela trajava um moletom novo, de um modelo que nunca vira na vida real. Teria sido algum artifício da adolescente que a acompanhava? Ela não sabia dizer com precisão, mas ambas seguiram até a sala. Ela estava curiosa pra saber o que tinha acontecido, mas ao chegar lá, apenas encontrou o estranho com nome de cachorro em pé ao lado da rachadura criada por ele quando acordou antes. Ele balançou a cabeça negativamente, deixando-a sem entender o que ele queria dizer de forma precisa. Certamente a adolescente entendera, já que pareciam se conhecer e já terem feito isso juntos tantas vezes. Mas pra ela, balançar a cabeça negativamente podia significar várias coisas... Inclusive um “fiquem aí e finjam que está tudo ok”. Mas a adolescente quebrou o silêncio.

— Então ele conseguiu escapar, né? Era o esperado, já que espreitadores oníricos desejam apenas se alimentar do medo e do pavor de suas vítimas. — ela olhou pra garota, continuando a explicação com o seu costumeiro simpático sorriso. — Eles são fortes, mas não gostam de lutas, só o fazendo como última alternativa. Fugir é sempre a primeira opção. Mas não tem com o que se preocupar, esse aí não volta mais. — ela olhou para a rachadura na varanda. — Rachadura peculiar essa aí, hein?

Ela viu a adolescente olhar pro estranho com um sorriso abafado e um olhar maroto, como o de uma irmã que pega o irmão mais velho aprontando alguma. Mas não falou nada, como deixasse o sermão e a bronca para quando estivessem a sós. Ele ficou claramente desconcertado, como se não estivesse acostumado a situações como essas e por isso não soubesse bem como reagir.

— Bem, melhor começar o ritual para tapar esse buraco. — a adolescente aproximou-se do buraco da rachadura, analisando-o. Estendendo a mão para a frente, continuou. — Megethos. Sphaera.

Ele cerrou o olhar, um pouco mais sério e acenou assertivamente. Dando um passo na direção da parede, ele atravessou sua perna, deixando a parede ondulando, como se fosse feita de água. Baixando o olhar, ele fitou a garota e disse:

— Desculpe. A culpa por tudo o que aconteceu foi toda minha. Se eu não tivesse utilizado seu sonho como atalho, nada disso teria acontecido.

— Ah... — a garota balbuciou, pensando em mil coisas pra dizer, mas percebeu que o nível de estranheza já era tão alto que ela não conseguia pensar em outra forma de agir que não a normal. — Tudo bem, aquele livro estava chato mesmo. Só não vá fazer isso de novo, senão na próxima coloco você de castigo.

— Obrigado. Não farei, tens minha palavra. — voltando o olhar na direção da adolescente, ele continuou. — Mellina, vou impedir a entrada de novas criaturas enquanto você faz o ritual de conserto da camada. Quando terminar, estarei lá fora esperando. — ele fez menção de prosseguir, passando o corpo todo, mas parou, deixando somente a cabeça saindo da parede. — Ah, moça... Quando você acordar, tome muito líquido, mesmo que tome algum analgésico. A água ajuda a diminuir a dor de cabeça pelo fluxo excessivo de epithymia.

Dito isso, Collie atravessou totalmente a parede, desaparecendo. Recitando algumas palavras antigas, Mellina começou a desenhar alguns símbolos alquímicos ao redor da rachadura, enquanto cantarolava. Confusa, a garota apenas disse:

— Não entendi o que ele quis dizer. Não sinto nenhuma dor de cabeça.

— Você entenderá na hora certa. — respondeu Mellina, abrindo um sorriso maroto.

Sem entender direito, a garota caminhou até a ponta do sofá, e sentou-se, observando a adolescente que estava utilizando o dedo pra marcar a parede ao redor da rachadura com símbolos estranhos, alguns até familiares aqui e ali de algum site de astrologia da net, mas de significado desconhecido, pelo menos para ela. Ela ainda não sabia bem o que pensar da situação... Estava convencida que era realmente um sonho, afinal, só assim conseguiria explicar algumas das situações ocorridas, mas a presença daqueles dois e sua forma de agir não se encaixavam no esperado de um sonho. Eles agiam fazendo coisas que ela não conhecia, falavam de assuntos estranhos com que nunca tivera contato... Havia a possibilidade mesmo de serem viajantes de sonhos... Mas... Isso seria possível? Nesse momento, percebeu que não desviara os olhos de Mellina e a adolescente notara a observação demorada.

— É demorado assim mesmo, porque tenho que preparar todo o aparato pra realização. — falou Mellina, como se a observação fixa viesse de curiosidade sobre o que ela estava fazendo. — Mas quando terminar, você não receberá mais visitantes indesejados.

— Até pessoas como vocês? — perguntou e notando o quanto podia parecer estar sendo grossa, porque eles a ajudaram, continuou. — Quero dizer, seu amigo atravessou quando não havia esse buraco aí.

— Pessoas como nós precisam saber atravessar a barreira que protege o sonho das outras pessoas. Não é algo que todo mundo conhece e a maioria das pessoas que possui essa habilidade, não a usa levianamente. — ela deu um sorriso. — Collie mesmo é um que vive repetindo sobre as responsabilidades do uso das habilidades oníricas. Foi uma das poucas vezes que eu o vi usar essas habilidades de forma descontraída.

— Sério? Pois ele me pareceu um pouco perdido. Quero dizer, ele não tinha essa sua segurança. Você quando chegou no quarto sabia bem o que fazer e fez rapidamente, mesmo quando aquele monstro pegou todo mundo de surpresa, você puxou aquela bola e acabou com o plano dele. Foi muito legal. Queria ter toda essa sua segurança.

— Segurança? Eu? — Mellina abriu um sorriso. — Muito obrigada, você é um doce. Mas sabe... Ele é o tipo de pessoa que costuma fazer isso, passar segurança pros outros. Ele aceita e compreende que somos humanos e que temos o direito de errar, mas não se dá esse direito. Ele é um pouco rígido demais consigo mesmo, se condenando ferrenhamente quando comete algum erro. Muitas vezes, eu quem tenho de lembrá-lo que ele pode relaxar um pouco, que pode se permitir ser um humano. Por isso, quando o encontrei aqui e vi o que tinha acontecido, eu sabia que ele deveria estar inseguro, agindo impulsivamente e colocando a vida em risco pra consertar o “erro”. Eu tinha de ser segura quando agi, tinha que ter confiança. Ele precisava ter esse suporte, esse apoio. De saber que está tudo bem em errar de vez em quando, que ele é humano e que, acima de tudo, ele possui um apoio pra ajudá-lo a se levantar. Como ele sempre mostrou pra mim.

— Nossa...

— Obrigada por me mostrar que consegui. — Mellina parou de desenhar os símbolos e ergueu a orbe. Os símbolos começaram a brilhar, envolvendo a rachadura em uma luminescência.

— Então, se entendi bem, com essa rachadura fechada, voltarei a estar segura.

— Você sempre esteve segura. Não há lugar mais seguro pra um sonhador que o seu sonho, por isso o espreitador estava utilizando seus medos para afetá-la. Deixá-la insegura, com medo, em pânico, incapaz de pensar e agir... Assim não poderia expulsá-lo.

— Como eu podia expulsá-lo? Você viu como ele era forte!

— Ué, o sonho é seu. Aqui você pode fazer tudo o que quiser, como quiser, quando quiser... O sonhador é praticamente um deus em seu sonho. E, ciente disso, ele preferiu voltar seus medos e inseguranças contra você, assim você não perceberia o poder que tinha. É por isso que muitas pessoas usam o medo e insegurança uns contra os outros no mundo...

— Mas aqui é um sonho. O mundo real é bem diferente.

— Nem tanto. A energia que usamos nos sonhos é chamada de epithymia, que significa desejo em grego. Em seu sonho é preciso desejar profundamente e ter confiança em si para que as coisas aconteçam. No mundo real funciona do mesmo jeito, a diferença é que lá você precisa agir, se mover, porque não há mudança sem movimento. Mas você é tão senhora da sua vida, lá, quanto é senhora de seu sonho, aqui. Tome.

Mellina estendeu a orbe para a garota, que olhou surpresa para a jovem. Vendo-a receosa, a adolescente incentivou-a com um aceno breve de cabeça a tomar a orbe para si. Ela estendeu as mãos, pegando para si a orbe que parecia feita de ar, de tão leve que era. Ficou olhando para aquela esfera que a garota tanto utilizava para usar suas habilidades.

— Um ritual demora dez minutos para ser executado. Mas, esse é o seu sonho. Você pode fazer isso bem mais rápido. Vá, deseje, do fundo do coração. Foque sua atenção nesse querer, imagine a rachadura fechando e tenha confiança, fé, que ela vai fechar só porque esse é o seu desejo.

A garota hesitou. Ela estava mesmo falando sério? Não havia a menor possibilidade dela conseguir fazer algo assim... Olhando para Mellina, para devolver a esfera, ela percebeu o olhar de confiança na adolescente. Ela estava acreditando nela, que ela era capaz de fazer. Ela tinha ao menos de tentar, já que Mellina tinha sido tão legal com ela e estava ajudando-a. Sem mencionar que ela estava com aquela esfera mágica nas mãos... É, talvez ela conseguisse. Não custava tentar. Respirando fundo, ela estendeu a orbe na direção da rachadura. Desejar e Confiar. Fechando os olhos, se concentrou, desejando aquilo de forma tão intensa que não havia mais espaço para nada, afastando a insegurança de falhar. Ao abrir os olhos, notou que a rachadura estava fechando rapidamente. Ela conseguira mesmo! Abrindo um sorriso, exclamou:

— Estou conseguindo! — ela olhou pra Mellina que acenou assertivamente com a cabeça. Voltando o olhar pra esfera. — Nossa, essa esfera é o máximo!

— Na verdade, ela não está fazendo nada. A gente pode até guardá-la. — falou, Mellina, séria, pegando a orbe de volta.

— Mas...

— A orbe só amplia um poder meu durante uma situação de tensão. Também auxilia na execução de rituais, mas só funciona comigo porque eu tenho habilidades de maga. Eu só te dei porque sabia que sozinha você não ia ter confiança para tentar. Por favor, não pare. Continue.

Ela hesitou novamente, olhando pra rachadura, que estava fechada pela metade. Esfregando os dedos nervosamente, sentiu a garganta secar. Ela não ia conseguir, estava na cara isso. Mas Mellina continuava com aquele olhar de voto de confiança, de certeza. A adolescente não errara em nada que fizera... Será que logo agora ela erraria? Não. Ela não podia pensar assim. Não podia pensar mal da menina. Não custava nada tentar. Esfregando novamente os dedos, estendeu a mão na direção da rachadura. Se pelo menos a esfera estivesse ali, com ela, se sentiria mais confiante... Fechando os olhos, ela procurou repetir tudo que fizera antes, mas a insegurança era bem maior dessa vez. Porque tudo estava sob responsabilidade dela. Não havia ninguém a quem culpar, nem a quem recorrer. Era um peso enorme. Engolindo a seco, ela abriu os olhos, mas a rachadura permanecia intacta. Olhando para Mellina, que apenas sorriu, ela voltou a fechar os olhos. Não estava fechando porque ela não conseguira alcançar a concentração de antes. Mas será que ela conseguiria? Tinha que tentar. Era seu sonho. Precisava desejar e confiar. Desejar e confiar. Aquele era seu sonho. Seu. Repetindo isso para si mesma, ela não deu espaço para outros pensamentos. Sentia uma força estranha surgir dentro de si, uma força que ela não percebera antes. E, ao abrir os olhos, percebeu que a rachadura fechara...

***

O despertador tocava de forma enfática, quando uma mão letárgica começou a tateá-lo procurando o botão de desligar. Com os olhos ainda pesados, ela viu que a hora já estava bastante avançada, o que indicava que deveria correr ou se atrasaria. Ao sentar-se na cama, sentiu seu corpo doer muito, como se tivesse passado o dia todo na academia de ginástica fazendo exercícios avançados após anos sem malhar. Mas pior do que toda essa dor no corpo era a dor de cabeça. Nem mesmo a ressaca do réveillon do ano passado, quando ela decidira beber todas as bebidas alcoólicas da festa, fora tão forte. E ela não tinha feito nada de mais na noite passada. Apenas lera uma graphic novel do Neil Gaiman que ganhara de presente de aniversário do seu amigo nerd. Fora o sonho estranho... O sonho mais estranho e agitado de toda sua vida. Levando a mão à cabeça, ela levantou-se cambaleante. A dor aumentara consideravelmente.

Se pudesse, desistia até de comparecer ao estágio, mas já estava devendo horas então uma falta estava fora de cogitação. Aos poucos as lembranças do seu sonho foram retornando um pouco mais vívidas, fazendo-a questionar se teria sido um sonho comum mesmo. “Quando você acordar, tome muito líquido, mesmo que tome algum analgésico. A água ajuda a diminuir a dor de cabeça pelo fluxo excessivo de epithymia.” Será que aquele sonho tinha algum traço de veracidade? Será que aqueles dois podiam mesmo viajar entre os sonhos e enfrentar criaturas como aquele monstro? Por via das dúvidas, ela dirigiu-se à cozinha, enchendo o seu copo com água. Após o terceiro copo, curiosamente, a dor estava mais tolerável. Com um quarto copo de água na mão, ela decidiu agilizar o processo de cura, tomando um analgésico.

Caminhando lentamente ela retornou ao seu quarto, contemplando-o da porta de entrada. Seu cantinho sagrado, seu lugar só seu. Um calafrio percorreu seu corpo ao lembrar do pesadelo e pensar na possibilidade daquilo se tornar real... Lembrou-se da conversa com a garota, a Mellina, e voltou a se perguntar como ela agiria no seu lugar. Pegando sua toalha, ela se olhou no espelho que estava ao lado do armário. “A energia que usamos nos sonhos é chamada de epithymia, que significa desejo em grego. Em seu sonho é preciso desejar profundamente e ter confiança em si para que as coisas aconteçam. No mundo real funciona do mesmo jeito, a diferença é que lá você precisa agir, se mover, porque não há mudança sem movimento. Mas você é tão senhora da sua vida, lá, quanto é senhora de seu sonho, aqui.” Ela não tinha como saber qual a reação da adolescente, o máximo que podia fazer era decidir como ela reagiria. E ela sabia bem como queria reagir, mas para isso precisaria desejar, confiar e agir... Porque não havia mudança sem movimento. E, pra que pudesse desejar, confiar e agir em sua vida, ela precisava tomar as rédeas para si, tomar a responsabilidade. Sem ninguém para culpar ou se pendurar. Precisava deixar de ser leitora do livro de sua vida, tomar a caneta para si e escrevê-las, em todas as páginas do livro de sua vida. O livro de capa dura sem título, com apenas o desenho, em alto relevo, de um chapéu. Lembrando-se do sonho, abriu um sorriso faceiro e com um novo brilho no olhar, concluiu:

— O título do livro é “Minha vida, meu sonho, meu cantinho”.
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